segunda-feira, 4 de julho de 2016

Bexiga Neurogênica

INTRODUÇÃO E DEFINIÇÕES

Lesões ou doenças do sistema nervoso são causas frequentes de distúrbios vésico-esfinctéricos, podendo ter um importante impacto na qualidade de vida dos seus portadores como também determinar o aparecimento de complicações como infecções do trato urinário (ITU), retenção urinária e deterioração do trato urinário inferior e superior.
A avaliação de pacientes com distúrbios miccionais neurogênicos requer um bom entendimento da fisiologia da micção, bem como das alterações fisiopatológicas que podem ocorrer em virtude de variadas doenças neurológicas.

ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA

Função Vesicoesfinctérica normal – Neurofisiologia

O trato urinário inferior (TUI) realiza duas funções básicas: enchimento/reservatório de urina e esvaziamento. Para que essas funções possam ocorrer adequadamente, é necessário que ocorra relaxamento da musculatura lisa vesical (detrusor) e aumento coordenado do tônus esfinctérico uretral durante a fase de enchimento da bexiga, e o oposto durante a micção. A coordenação das atividades da bexiga e do esfincter uretral envolve uma complexa interação entre os sistemas nervosos (central e periférico) e fatores regulatórios locais, e é mediada por vários neurotransmissores.
O funcionamento da bexiga é coordenado em diferentes níveis do sistema nervoso central, localizados na medula, ponte e centros superiores, por meio de influências neurológicas excitatórias e inibitórias que se dirigem aos órgãos do trato urinário inferior e da aferência sensitiva destes órgãos. Perifericamente, o trato urinário inferior é inervado por três tipos de fibras: parassimpáticas; simpáticas e somáticas. A inervação vesical parassimpática origina-se de neurônios localizados na coluna intermédio-lateral dos segmentos S2 a S4 da medula e é conduzida pelo nervo pélvico até os gânglios localizados no plexo pélvico. Este se localiza lateralmente ao reto e origina as fibras parassimpáticas pós-ganglionares, que se dirigem para a bexiga. A inervação eferente simpática é originada no segmento toracolombar da medula, de T10 a L2, e direciona-se, através da cadeia simpática, ao plexo hipogástrico superior (pré-aórtico). A subdivisão caudal deste plexo forma o nervo hipogástrico, contendo os eferentes pós-ganglionares simpáticos para a bexiga e a uretra. A inervação da musculatura estriada do esfincter uretral é predominantemente somática. Origina-se no núcleo de Onuf, localizado no corno anterior de um ou mais segmentos da medula espinhal sacral (S2-S4). Fibras somatomotoras originadas deste núcleo inervam o esfincter uretral, por meio dos nervos pudendos, sem conexão em gânglios periféricos. Há evidências de que o esfincter uretral também receba influência simpática e parassimpática, a partir de ramos dos nervos hipogástrico e pélvico. Vias aferentes, partindo de receptores localizados na bexiga e na uretra, são responsáveis pela transmissão de informações vindas dos referidos órgãos para o sistema nervoso central (SNC). Dirigem-se para o plexo pélvico, de onde partem para a medula através dos nervos pélvico, hipogástrico e pudendo. Na medula, fazem sinapse com neurônios localizados no corno dorsal.
A atividade dos centros medulares é controlada por centros superiores, através de tratos descendentes cefalospinais. A micção é coordenada no tronco encefálico, especificamente na substância pontino-mesencefálica, denominado centro pontino da micção (CPM), que é a via final comum para os motoneurônios da bexiga, localizados na medula espinhal. Em circunstâncias normais, a micção depende de um reflexo espino-bulbo-espinal liberado pelo CPM. Este recebe influências do córtex cerebral, cerebelo, gânglios da base, tálamo e hipotálamo (influências suprapontinas), em sua maior parte inibitórios.
Resumidamente, pode-se descrever o ciclo miccional normal da seguinte forma:

1.    Enchimento: a distensão da bexiga leva à ativação progressiva dos nervos aferentes vesicais. Esta ativação é acompanhada pela inibição reflexa da bexiga, via nervo hipogástrico, e estimulação simultânea do esfincter externo via nervo pudendo. O CPM é continuamente monitorado sobre as condições de enchimento vesical, mantendo sua influência inibitória sobre o centro medular sacral, que inerva a bexiga, liberando progressivamente a ativação do esfincter externo.
2.    Esvaziamento: após alcançar um nível crítico de enchimento vesical e sendo a micção desejada naquele momento, o CPM interrompe a inibição sobre o centro sacral da micção (parassimpático), que ativa a contração vesical através do nervo pélvico. Ao mesmo tempo, a influência inibitória sobre a bexiga, feita pelo sistema simpático através do nervo hipogástrico, é interrompida e ocorre simultânea inibição da ativação somática do esfincter, relaxando o aparelho esfinctérico e garantindo a coordenação da micção. Pode-se descrever o ciclo miccional normal como um simples processo de “liga-desliga”, em que, em um primeiro momento, ocorre inibição dos reflexos da micção (inibição vesical por meio da estimulação simpática e inibição da estimulação parassimpática) e ativação dos reflexos de enchimento vesical (estimulação esfinctérica pudenda). Este mecanismo é alternado para ativação dos reflexos da micção (estimulação vesical parassimpática) e inibição dos reflexos de enchimento (inibição da ativação esfinctérica) e as duas fases vão se alternando seguidamente.

O conhecimento da neuroanatomia e neurofisiologia envolvida no controle da micção permitem antecipar quais os tipos de distúrbios miccionais que podem ocorrer secundários a patologias que acometem diferentes estruturas do sistema nervoso. O fator mais importante, neste sentido, é a localização das estruturas afetadas pela neuropatia:
Doenças acometendo estruturas do SN localizadas acima do tronco cerebral, geralmente resultam em contrações detrusoras involuntárias, com coordenação vésico-esfinctérica mantida. Os sintomas associados são geralmente de aumento da frequência miccional, urgência, urge-incontinência e noctúria. Raramente há deterioração do trato urinário inferior ou superior, já que a coordenação vésico-esfinctérica é preservada e as pressões vesicais são mantidas em níveis baixos. Entre as patologias neurológicas mais frequentes neste segmento, destacam-se os acidentes vasculares cerebrais, traumatismos e tumores cerebrais e a doença de Parkinson.
Nas doenças que acometem a medula espinhal acima do segmento sacral, o padrão mais frequente é de hiper-reflexia detrusora com dissinergismo vésico-esfinctérico. A interrupção da inibição do arco reflexo da micção associa-se à perda da coordenação do relaxamento esfinctérico, já que o CPM também está desconectado dos centros medulares da micção. As causas principais de lesões neste nível são os traumatismos raquimedulares, esclerose múltipla, mielodisplasia toracolombar (mielomeningocele) e doenças inflamatórias de diferentes etiologias, como a mielite pelo HTLV-1 (paraparesia espástica tropical), neuroesquistossomose medular e outras mielites de origem indeterminada. Nestes pacientes, os sintomas mais frequentes são incontinência urinária e dificuldade miccional. Na maioria dos casos, a sensibilidade vesical está abolida ou é inespecífica. A maioria dos pacientes apresenta elevação da pressão detrusora pela hiper-reflexia associada ao dissinergismo. O resíduo miccional também é elevado. Muitos podem evoluir com perda da complacência vesical e ITU de repetição. A associação de elevadas pressões vesicais e ITU de repetição, se não tratada, leva à deterioração progressiva da bexiga e do trato urinário superior, podendo ultimamente determinar a falência renal.
Nas lesões medulares acometendo segmentos abaixo de S2, a arreflexia detrusora é o padrão mais frequente, uma vez que o centro parassimpático da micção é lesado. O mecanismo esfinctérico pode ser afetado de várias maneiras, mas geralmente mantém um tônus moderado. Os pacientes com lesões neste nível geralmente apresentam sintomas de dificuldade miccional associados a perda total ou parcial da sensibilidade vesical. Podem apresentar incontinência por transbordamento. Por vezes, pode haver lesão predominante do núcleo de Onuf, responsável pela inervação do rabdoesfincter uretral. Nestas circunstâncias, pode ocorrer deficiência esfinctérica. As patologias que mais frequentemente acometem este segmento da medula são os TRM e as mielodisplasias, como a mielomeningocele lombossacral e as malformações sacrais.
As lesões que acometem estruturas periféricas podem ser bastante semelhantes às lesões dos segmentos medulares sacrais inferiores. Frequentemente, entretanto, o tônus esfinctérico pode ser muito baixo, podendo ocorrer deficiência esfinctérica severa. São causadas por traumatismos pélvicos severos e cirurgias pélvicas radicais, como amputação de reto e cirurgia de Wertheim-Meiggs.
Não é possível prever com exatidão o padrão de disfunção vésico-esfinctérica de um paciente com base exclusivamente no conhecimento do nível da lesão neurológica.
A fase da lesão também deve ser considerada na avaliação e no tratamento de algumas patologias neurológicas. No TRM agudo, há uma fase inicial de choque medular, com duração de dias a semanas, onde ocorre padrão de arreflexia detrusora. De forma semelhante, pacientes com AVC podem apresentar retenção urinária nos primeiros dias da lesão devido a uma fase transitória de arreflexia detrusora.

Classificação das Disfunções Miccionais Neurogênicas

Várias classificações foram propostas para descrever os padrões miccionais causados por lesões neurológicas. Atualmente, a classificação funcional proposta por Wein e Barret (1988) é a que tem recebido maior aceitação entre os especialistas e é a mais recomendada. Pode ser utilizada para pacientes com distúrbios miccionais de qualquer origem, não necessariamente neurogênicos. Classifica os distúrbios em problemas do enchimento vesical, do esvaziamento ou combinado (Tabela 1).

Tabela 1: Classificação funcional expandida das disfunções miccionais neurogênicas

Falha de armazenamento
Falha de esvaziamento
Causa vesical: hiperatividade (contrações involuntárias do detrusor), doença ou lesão neurológica, inflamação, idiopática, obstrução infravesical, déficit de complacência, doença ou lesão neurológica, fibrótica, hipersensibilidade, inflamatória/infecciosa, neurológica, psicológica
Causa vesical: neurológica, miogênica, psicogênica, idiopática
Causa infravesical: incontinência urinária de esforço genuína, falha de suporte suburetral, relaxamento do assoalho pélvico, hipermobilidade vésico-uretral, deficiência esfinctérica intrínseca, doença ou lesão neurológica, fibrótica, mista
Causa infravesical: anatômica, obstrução prostática, estenose do colo vesical, estenose uretral, compressão uretral, funcional, dissinergia do esfincter estriado, dissinergia do esfincter liso, mista

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